Quando comecei a planejar viagens pelo Brasil com foco em pequenos produtores locais, percebi que a experiência gastronômica se transforma completamente. Em vez de simplesmente “comer bem”, passei a entender histórias, modos de vida, desafios e orgulhos de quem coloca comida na nossa mesa. Neste artigo, compartilho, em primeira pessoa, como eu mesma organizo esse tipo de viagem, passo a passo, para que você também possa mergulhar na riqueza gastronômica brasileira valorizando produtores de pequeno porte.
Definindo o objetivo da viagem gastronômica
A primeira coisa que faço é definir com clareza o que eu busco nessa viagem. “Gastronomia” é uma palavra ampla: posso focar em ingredientes específicos, em técnicas tradicionais, em bebidas artesanais ou em tudo isso ao mesmo tempo. Então, sempre me faço algumas perguntas:
- Quero conhecer mais ingredientes nativos, como pequi, baru, açaí, cumaru, priprioca?
- Tenho interesse em cafés especiais, queijos artesanais, vinhos brasileiros, cachaças de alambique ou cervejas artesanais?
- Prefiro vivências em roças, fazendas, comunidades quilombolas, aldeias indígenas ou cooperativas urbanas?
- Quero priorizar uma região específica ou montar um itinerário que passe por mais de um bioma?
Com essas respostas, começo a desenhar o foco da viagem. Por exemplo, já organizei uma rota quase inteira dedicada a cafés especiais no Sul de Minas e outra centrada em queijos artesanais na Serra da Canastra e em Minas Gerais Central. Em outra ocasião, preparei um roteiro pelo Cerrado, buscando pequenos produtores de castanhas, frutos nativos e mel.
Escolhendo regiões e biomas para explorar
O Brasil é tão grande que, para não me perder, eu sempre penso primeiro nos biomas. Isso me ajuda a entender o que vou encontrar em termos de ingredientes e cultura alimentar:
- Amazônia: foco em peixes de rio, frutos como açaí, cupuaçu, bacuri, castanha-do-pará, óleos amazônicos e técnicas indígenas tradicionais de preparo e conservação.
- Cerrado: diversidade gigantesca de frutos (pequi, baru, cagaita, mangaba), meles de abelha nativa sem ferrão, pequenas agroflorestas e cooperativas de extrativistas.
- Mata Atlântica: cacau de origem, chocolate bean to bar, banana, palmito pupunha cultivado, cafés de sombra, além de pequenos produtores orgânicos perto de grandes cidades.
- Sertão / Caatinga: uso de técnicas de conservação ancestral, como secagem e salga, caprinos e ovinos, umbu, licuri, além de cooperativas que trabalham com polpas, doces e geleias.
- Pampa e Campos Sulinos: pecuária familiar, vinhos de pequenos vinhedos, queijos coloniais, erva-mate artesanal e hortas comunitárias.
Quando escolho o bioma, consigo naturalmente reduzir as regiões. Por exemplo, se quero Amazônia, penso em cidades como Belém, Manaus, Santarém e em municípios menores com acesso por rio. Se opto pelo Cerrado, miro Goiás, Distrito Federal, norte de Minas, oeste da Bahia, Mato Grosso do Sul, sempre buscando localidades com redes de produtores articuladas.
Mapeando pequenos produtores antes da viagem
Uma das etapas mais importantes, para mim, é o mapeamento prévio. Não dá para confiar apenas no improviso, especialmente quando se trata de pequenos produtores, que muitas vezes não têm site estruturado ou presença forte nas redes sociais. Eu costumo seguir alguns caminhos:
- Associações e cooperativas: procuro termos como “cooperativa de agricultores familiares + nome da cidade ou estado” ou “associação de produtores rurais + região”. Muitas vezes, esses grupos já têm visitas técnicas ou turísticas estruturadas.
- Instituições de apoio: o SEBRAE, Emater, institutos federais e universidades frequentemente apoiam pequenos produtores. Gosto de entrar nos sites regionais e procurar projetos ligados à agroecologia, agricultura familiar, turismo rural e economia solidária.
- Feiras orgânicas e de agricultura familiar: busco nas capitais ou cidades polo, porque ali encontro um “condensado” de produtores de toda a região. Quando chego à feira, converso, pego contatos e muitas vezes isso rende visitas às propriedades.
- Chefs e restaurantes de cozinha de território: alguns cozinheiros têm relação estreita com produtores. Seguindo esses chefs nas redes, encontro indicações valiosas de quem produz queijo, hortaliças, ovos, mel, chocolate, frutas e muito mais.
Com essas informações, monto uma lista com os nomes dos produtores, a localização aproximada, o tipo de produto e os contatos. Depois, entro em contato com antecedência, geralmente por WhatsApp, explicando quem sou, o que busco e propondo uma visita remunerada, seja em forma de experiência guiada, degustação ou diária na propriedade.
Organizando o roteiro com base na logística real
Outro ponto fundamental é encaixar o roteiro na realidade das estradas, do transporte público e das distâncias. O mapa pode enganar: algo que parece perto pode significar horas em estrada de terra. Costumo seguir alguns princípios:
- Agrupar visitas por micro-região, evitando muitos deslocamentos longos no mesmo dia.
- Reservar mais tempo do que o necessário em propriedades rurais, porque as conversas se estendem e, para mim, essa é justamente a graça da viagem.
- Checar sempre se o acesso é por estrada pavimentada, terra batida ou trilha, e se há necessidade de carro alto ou 4×4.
- Ter um plano B para dias de chuva, principalmente em regiões de muita lama ou enchentes sazonais.
Também gosto de intercalar dias de campo com dias em cidades-base, onde posso organizar o que comprei, enviar produtos por transportadora (quando possível) e registrar anotações detalhadas sobre o que vivi e aprendi.
Critérios que uso para escolher produtores
Ao longo do tempo, criei alguns critérios pessoais para priorizar quem vou visitar. Eu dou preferência a produtores que:
- Trabalham com agroecologia, orgânicos ou sistemas agroflorestais, mesmo que ainda não tenham certificação formal, mas demonstrem práticas sustentáveis.
- Participam de redes locais, como feiras de agricultores, cooperativas, associações de mulheres ou de juventude rural.
- Preservam técnicas tradicionais, como queijos de leite cru, fermentações naturais, farinhas artesanais, cultivo de sementes crioulas.
- Mostram compromisso com o território, defendendo rios, florestas, nascentes e a permanência das famílias no campo.
Esses critérios me ajudam a garantir que meu dinheiro esteja indo para iniciativas que fortalecem a produção responsável e a cultura alimentar local, e não apenas para experiências superficiais voltadas ao turismo de massa.
Como eu me preparo para as visitas
Antes de chegar à propriedade, procuro ao máximo entender o contexto daquela família ou grupo. Isso inclui:
- Ler reportagens, estudos ou materiais institucionais sobre a região e as cadeias produtivas (café, queijo, cacau, cachaça, mel etc.).
- Entender questões como regularização sanitária, desafios de escoamento da produção, preço justo e relação com intermediários.
- Aprender o básico sobre o produto: tipos de torra de café, diferenças entre leite cru e pasteurizado, tipos de cacau, manejos de abelhas nativas, por exemplo.
Chego sempre com postura de respeito, curiosidade verdadeira e sem pressa. Essa abertura gera conversas profundas, em que ouço histórias de luta, de seca, de enchentes, de políticas públicas que funcionam (ou não), de avanços conquistados a duras penas. É isso que torna a experiência tão transformadora para mim.
Cuidados éticos ao visitar pequenos produtores
Para mim, uma viagem gastronômica responsável exige atenção a alguns aspectos éticos. Alguns cuidados que sempre levo comigo:
- Não tratar o produtor como “atração turística”, e sim como parceiro e anfitrião.
- Evitar negociar preços de forma agressiva. Se estou ali para valorizar o pequeno produtor, não faz sentido tentar baratear o trabalho dele.
- Pedir autorização antes de fotografar pessoas, casas, cozinhas e espaços de trabalho.
- Respeitar horários de produção, descanso e rituais (relacionados à religião, à cultura ou à família).
- Dar retorno depois da viagem, seja com fotos, relatos, divulgação nas redes ou indicação para outras pessoas.
Vejo essa postura como parte do próprio “cardápio” da viagem: não é só o que eu como, mas como eu me relaciono com quem produz.
Transformando a viagem em aprendizado duradouro
Quando volto para casa, não quero que as experiências fiquem apenas na memória. Então adotei alguns hábitos:
- Anotar em um caderno ou arquivo digital o nome de cada produtor, o que ele faz, onde fica, e algo que me marcou na conversa.
- Registrar receitas ou modos de preparo que aprendi, mesmo que de forma aproximada, para depois testar na minha cozinha.
- Continuar comprando, quando possível, por envio direto, feiras especializadas ou lojas que trabalham com esses produtores.
- Compartilhar histórias em redes sociais, blogs (como este) e rodas de conversa, dando crédito aos produtores e às suas organizações.
Assim, cada viagem se soma à anterior, criando uma rede de referências. Aos poucos, vou construindo, na minha mente e na minha cozinha, um mapa afetivo do Brasil gastronômico de pequenos produtores.
Exemplo de roteiro temático que eu já faria hoje
Para ilustrar, deixo um esboço de roteiro que eu mesma organizaria, pensando em uma viagem de dez dias focada em pequenos produtores de café, queijo e mel entre Minas Gerais e interior de São Paulo:
- Dia 1 e 2 – Sul de Minas: visitar pequenos produtores de café especial, experimentar diferentes métodos de extração, entender o manejo de sombra, altitude e colheita seletiva. Ficar em uma hospedagem rural que sirva refeições com ingredientes da própria horta.
- Dia 3 e 4 – Serra da Canastra: conhecer produtores de queijo de leite cru, entender o processo de cura, as exigências sanitárias, os desafios da certificação. Caminhar por pastos e áreas de nascente, discutir a relação entre gado, solo e água.
- Dia 5 e 6 – Região central de Minas: visitar uma feira de agricultura familiar em cidade média, conversar com apicultores de mel de florada específica (e, se possível, mel de abelha nativa), além de agricultores de hortaliças agroecológicas.
- Dia 7 e 8 – Interior de São Paulo (Mata Atlântica): conhecer pequenos produtores de cacau e chocolate bean to bar, além de cafeterias que trabalham apenas com cafés de origem, conectados diretamente a fazendas familiares.
- Dia 9 e 10 – Cidade-base com boa cena gastronômica: aproveitar restaurantes que valorizem ingredientes locais e pequenos produtores, revisitar contatos, organizar compras e registrar aprendizados da viagem.
Esse é só um exemplo, e cada pessoa pode ajustar conforme o interesse, o tempo disponível e o orçamento. O importante, para mim, é manter o foco: privilegiar quem produz em pequena escala, com cuidado, identidade e respeito ao território.
Planejar uma viagem gastronômica pelo Brasil focada em pequenos produtores locais é, para mim, uma forma de reconectar prato, pessoa e paisagem. É entender que cada queijo, cada grão de café, cada pedaço de chocolate ou colherada de mel carrega um pedaço de floresta, de cerrado, de rio e de história. Quando eu organizo minha viagem com essa consciência, volto para casa não só com a mala cheia de sabores, mas também com a sensação de fazer parte de uma corrente que fortalece o que o Brasil tem de mais rico: a diversidade de quem cultiva, cria, transforma e compartilha comida de verdade.
Fabiola
