Viajar pelo Brasil sempre foi, para mim, uma forma de conhecer outras histórias e enxergar o país para além dos cartões-postais. Entre as experiências mais transformadoras que já vivi estão as visitas a comunidades quilombolas, territórios marcados pela resistência, pela preservação de saberes ancestrais e por uma relação com a natureza que tem muito a ensinar. Neste guia, compartilho uma visão prática e responsável de como fazer turismo sustentável em comunidades quilombolas, valorizando a cultura local e contribuindo para a geração de renda de forma ética e respeitosa.
O que são comunidades quilombolas e por que visitá-las?
Comunidades quilombolas são grupos formados, em sua origem, por pessoas negras escravizadas que fugiram de fazendas e engenhos e criaram territórios de resistência. Hoje, muitos desses quilombos são reconhecidos oficialmente pelo Estado brasileiro, e suas terras são importantes não só pela história, mas também pela proteção de biomas, rios, florestas e modos de vida tradicionais.
Quando escolho visitar uma comunidade quilombola, não estou apenas “fazendo turismo”; estou participando de uma troca. De um lado, eu aprendo sobre espiritualidade, agricultura, culinária, música, dança, artesanato e formas coletivas de organização social. De outro, deixo uma contribuição econômica direta para a comunidade, que pode fortalecer sua autonomia e seus projetos locais.
Princípios básicos do turismo sustentável em quilombos
Antes de colocar a mochila nas costas, sempre busco seguir alguns princípios que considero essenciais para um turismo verdadeiramente responsável:
- Respeito à autodeterminação: cada quilombo decide se quer ou não receber visitantes, como, quando e em quais condições.
- Consulta prévia: entrar em contato com a associação de moradores, cooperativa ou liderança da comunidade antes da visita é indispensável.
- Contrapartida econômica justa: pagar de forma transparente pelos serviços de hospedagem, alimentação, guia local, transporte interno e artesanato.
- Valorização de saberes locais: reconhecer que eu estou ali para aprender, e não para “avaliar” ou comparar a cultura do outro com a minha.
- Cuidado com o ambiente: reduzir lixo, evitar desperdício de água e energia, e seguir as orientações sobre áreas sensíveis ou restritas.
- Fotografia responsável: pedir permissão antes de fotografar pessoas, rituais, casas e espaços coletivos.
Como escolher comunidades quilombolas para visitar
Ao planejar uma viagem, eu sempre começo pesquisando quais comunidades quilombolas já trabalham com turismo organizado ou com atividades de visitação estruturadas. Isso ajuda a evitar situações em que a presença de turistas seja mais um peso do que uma oportunidade.
Alguns caminhos para encontrar destinos responsáveis:
- Buscar informações em sites de turismo de base comunitária, que costumam indicar roteiros em quilombos com acompanhamento local.
- Consultar associações quilombolas regionais ou entidades como a CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas).
- Verificar com guia locais credenciados se eles trabalham diretamente com as comunidades, sem atravessadores exploratórios.
- Procurar projetos de pesquisa, extensão universitária ou ONGs que atuem junto a quilombos e apoiem iniciativas de turismo sustentável.
Eu também costumo priorizar comunidades que tenham:
- Hospedagem em casas de família, pousadas comunitárias ou campings geridos pela própria comunidade.
- Atividades culturais conduzidas pelos moradores, como rodas de conversa, oficinas, trilhas guiadas e apresentações tradicionais.
- Transparência sobre como a renda do turismo é distribuída entre as famílias ou as associações locais.
Experiências típicas em uma viagem a comunidades quilombolas
As experiências variam muito de região para região, mas alguns tipos de vivência são bastante frequentes e, na minha percepção, profundamente enriquecedores:
- Vivência com agricultura e pesca tradicionais: acompanhar o plantio, a colheita, o beneficiamento de alimentos locais, ou a pesca artesanal em rios, lagoas ou no mar.
- Oficinas de culinária quilombola: aprender receitas com ingredientes típicos, como mandioca, banana, feijão, frutos do cerrado, da caatinga ou da floresta.
- Trilhas ambientais interpretativas: caminhar com um morador que conhece cada planta, cada fonte de água, cada história daquele território.
- Rodas de memória e contação de histórias: ouvir relatos sobre a formação do quilombo, as lutas por terra, as tradições religiosas e as festas.
- Artesanato e saberes manuais: participar de oficinas de trançado, cerâmica, bordado, instrumentos musicais ou outros ofícios.
- Festividades e celebrações: quando o convite parte da própria comunidade, é possível acompanhar festas de santo, sambas de roda, congadas, jongo, batuques e outras manifestações.
Costumo encarar cada uma dessas atividades não como “atrações turísticas”, mas como práticas vivas de um povo que se mantém em movimento, resistindo e se reinventando.
Impactos econômicos positivos: como o turismo pode gerar renda justa
Quando organizado com participação direta da comunidade, o turismo pode se tornar uma fonte importante de renda. Eu gosto de perceber, na prática, alguns mecanismos que aumentam esse impacto positivo:
- Hospedagem local: dormir em casas de família ou pousadas quilombolas faz com que o dinheiro circule internamente, pagando trabalhadores da própria comunidade.
- Alimentação comunitária: comer no refeitório coletivo ou na casa de cozinheiras locais fortalece a economia de pequenos produtores e feirantes.
- Guias quilombolas: contratar guias da própria comunidade valoriza o conhecimento territorial e histórico que essas pessoas carregam.
- Compra de artesanato: adquirir peças diretamente dos artesãos, sem intermediação exploratória, é uma forma concreta de apoiar famílias.
- Pacotes montados pela associação local: quando a própria comunidade define os preços e organiza os serviços, há mais transparência e divisão mais justa de lucros.
Eu sempre pergunto, de forma respeitosa, como a renda do turismo é distribuída. Essa pergunta, feita com cuidado, mostra interesse em fortalecer iniciativas coletivas, e não apenas ter uma experiência individual agradável.
Cuidados éticos e culturais durante a visita
Estar em um território quilombola exige uma postura de escuta e humildade. Alguns cuidados que sempre procuro ter:
- Vestimenta adequada: respeitar orientações sobre roupas em espaços sagrados, celebrações ou locais de trabalho agrícola.
- Silêncio e atenção em rituais: em manifestações religiosas ou espirituais, sigo as regras do grupo e evito interromper com perguntas ou registros excessivos.
- Não romantizar a realidade: comunidades quilombolas enfrentam racismo, conflitos fundiários, falta de políticas públicas; não se trata de “paraísos exóticos”, e sim de territórios em luta.
- Consultar antes de compartilhar imagens: algumas fotos podem expor crianças, idosos ou rituais que a comunidade prefere manter reservados.
- Evitar barganhar de forma agressiva: negociar preços de forma respeitosa, lembrando que o valor cobrado está ligado à sobrevivência e ao reconhecimento daquele trabalho.
Para mim, o turismo sustentável se mede menos pelas fotos bonitas e mais pelo tipo de relação construída com as pessoas que me recebem.
Preparando a viagem: logística e planejamento responsável
Ao organizar uma viagem a uma comunidade quilombola, sigo alguns passos práticos:
- Entro em contato com antecedência por telefone, e-mail ou redes sociais da associação local, explicando quem sou, quando pretendo ir e com quantas pessoas.
- Pergunto se há datas mais adequadas para visita, evitando períodos de plantio intenso, colheita ou eventos internos em que o turismo não seja bem-vindo.
- Verifico opções de transporte seguro até o quilombo (estradas de terra, travessias de barco, horários de ônibus).
- Confiro se há restrições de itens (por exemplo, bebidas alcoólicas, uso de caixas de som, drones, etc.).
- Preparo uma bagagem essencial e discreta, evitando levar objetos de alto valor ostensivo.
- Levo dinheiro em espécie, pois muitas comunidades não têm acesso a máquinas de cartão ou internet estável.
Esse cuidado logístico evita imprevistos que possam sobrecarregar a comunidade ou transformar a visita em um transtorno para quem me recebe.
Por que o turismo quilombola é também um ato político
Viajar até um quilombo não é apenas um deslocamento geográfico; para mim, é uma escolha política. Ao apoiar uma comunidade quilombola com minha presença consciente e meu dinheiro, estou ajudando a sustentar projetos de educação, preservação ambiental, produção de alimentos, reforma de moradias e fortalecimento cultural.
O turismo, quando construído a partir da perspectiva da comunidade, torna-se uma ferramenta de enfrentamento ao racismo estrutural, à invisibilização da história negra no Brasil e à expropriação de terras. Eu saio dessas viagens diferente: com outra compreensão sobre liberdade, território, fé, trabalho coletivo e futuro.
Se você, assim como eu, busca viagens que façam sentido, que criem laços e deixem rastros positivos, inserir comunidades quilombolas em seu mapa é um passo poderoso. Mais do que “conhecer lugares”, trata-se de reconhecer sujeitos, histórias e direitos que há séculos sustentam o Brasil que temos hoje.
Fabiola
